Por um método aberto, neste momento, nas artes e em todo lado (agora, neste momento, o melhor é fazer nada e deixar tudo na mesma)

A pesquisa acadêmica em artes promove um sem número de discussões, nas mais variadas esferas, que questionam a seriedade dos trabalhos desenvolvidos, sua serventia (o que um artista quer na academia?), e que podem muitas vezes cercear a produção artística, moldando-a naquilo que se espera dela nas instituições de ensino superior.

Eu não vou trazer uma solução única, até porque não me parece que ela exista, ainda e especialmente agora, neste momento tão delicado que as universidades públicas vivem no país. Mais vou partilhar o que sinto: agora, o meu sentimento é que o caminho certo é fazer e-xa-ta-men-te o que se espera de nós: a fundação de fomento quer uma metodologia careta? Claro, vou consultar um dos vários “como se fazer uma tese” e copiar de lá todas as ferramentas conhecidas de recolha de dados, ainda que isso não me ajude exatamente a chegar ao meu objeto; o orientador pede um cronograma claro para assinar o relatório da bolsa? Com certeza, agora mesmo vou desenhar uma sequência de eventos que desconheço quais são e os colocar no tempo que com certeza vai mudar; a banca achou o texto confuso? Não se preocupem! Deem-me mais uns dias que coloco tudo nos eixos, com introdução, desenvolvimento em três capítulos (um teórico, esboçado nas leituras de um cronograma fictício, um com a metodologia, quando explico sobre todas as ferramentas que não usei, e o terceiro com um objeto que não tive tempo de conhecer, já que estava envolvido neste faz de conta), sem esquecer de uma conclusão que amarra tudo, caprichadamente e para inglês ver.

É tudo cocô.

Tive a sorte de estudar em lugares e com professores que me deram muita liberdade na pesquisa (a Universidade de Aveiro, inclusive, tem pesquisadores muito sérios na área). Pude fazer, todas as vezes, da maneira como quis, recebendo os elogios que mereci e levando as porradas certas, no momento em que precisei (confesso que algumas dispensaria, mas tudo bem…). Em determinado ponto da tese, escrevi que a natureza teórico-prática da pesquisa assumia a não adoção de um viés metodológico único, utilizando procedimentos de investigação de diferentes tipos, de maneira que se pudesse atender às demandas metodológicas geradas no processo sem que fosse negligenciado o rigor científico (olha ele aí). Vejam o contorcionismo: era o meu jeito de me resguardar por fazer aquilo como eu tinha feito, com plena convicção de que não haveria outra forma de fazer! Havia um sentido que regia tudo, que estava por trás de tudo, mas cada movimento, cada parte da pesquisa, foi desenvolvida separadamente, no seu tempo e do seu modo, utilizando ferramentas, fontes e métodos de diferentes áreas, numa costura que começou em mim, na minha experiência de artista e pesquisador, mas que só se completou na mão do leitor da tese, que tinha que decidir como e em que profundidade estava disposto a construir o texto que estava em suas mãos. Foi assim porque tinha que ser assim.

Fiz do jeito que me pareceu mais correto, comigo e com a pesquisa, mas dando a entender que não, que tinha feito como era solicitado e esperado. Foi uma experiência tremenda e que, eu imaginava, seria libertadora: agora doutor, nunca mais iria precisar escamotear o jeito de fazer e produzir nesse lugar. Ledo engano.

Se você passa por isso, não desista. O que me dá força é pensar que até isso pode ser encarado como um exercício de criatividade, sendo colocados nesse lugar dúbio para nos fazer aprender a driblar, e que o mais importante mesmo é não deixarmos de acreditar naquilo que fazemos, da forma que fazemos. Eles querem ver você falar sobre método, está aqui, dois pontos. Pedem para que fale sobre escrever um objetivo, tome, leve. Estão com dúvidas sobre a pergunta da sua pesquisa, saiba explicar de um jeito que eles entendam.

Uma hora nossa hora vai chegar.

Reconfigurações espaciais a partir da Covid-19

Muito se fala num “novo normal”, expressão para apontar um suposto novo estado de normalidade que incluiria cuidados, precauções e procedimentos de trabalho, educação e sociabilidade. Entrariam aí, por exemplo, o uso constante de máscara, a ausência do cumprimento por mãos, o teletrabalho, a educação a distância… Talvez ainda seja bastante cedo para termos contornos definidos de uma nova normalidade, especialmente porque costumamos adotar procedimentos que nem sempre constituem caminhos a partir de normas – ou seja, gostamos de adaptar, de nos apropriar, de ressignificar práticas, objetos e condutas. As mudanças culturais, afinal, não se realizam a partir de mudanças de chaves: elas são graduais, ocorrem por meios furtivos, às vezes imperceptíveis no curto prazo.

Algumas pistas, entretanto, começam a se desenhar – se não como práticas cabalmente situadas num novo formato, pelo menos como indícios do que teremos em certos lugares. Em New York, temos o exemplo do Williamsburg’s Domino Park, que agora conta com círculos demarcando áreas onde pode ficar uma pessoa por vez.

Fonte: NYC Urbanism [https://www.instagram.com/p/CARX66YHMf4/]

No Instagram, o Playground publicou uma série de fotos mostrando largos espaçamentos entre as pessoas em lugares públicos, sem especificar, contudo, a origem das fotos. Algumas das práticas de distanciamento são inspiradas na separação por meio de zonas restritas, enquanto outras proíbem que indivíduos venha a se sentar próximos uns dos outros.

Fonte: PlayGround Br

Já o site Tactical Space, uma iniciativa realizada por colaboração, está aberto a exemplos que evidenciem táticas de enfrentamento à Covid-19 no que diz respeito aos usos e apropriações do espaço. A rigor, o site aceita contribuições variadas relacionadas a qualquer tipo de adaptação urbana, tais como zonas de desaceleração, ciclofaixas temporárias, hortas coletivas etc.

https://i0.wp.com/tactical.space/wp-content/uploads/2020/05/Credit-New-Zealand-Government-1024x577.jpeg?resize=435%2C244&ssl=1
Tactical Space coleta, por colaboração, exemplos de adaptações urbanas visando uma cidade mais humana e coletiva.

No Brasil, tem sido comum que farmácias e supermercados, lugares de maior permissão de circulação nesse “novo normal”, estejam sendo controlados de formas variadas, como filas com faixas de distanciamento de 1,5m a 2m entre cada pessoa, além da proibição de indivíduos sem máscara. Há também cuidados para não lotar lugares pequenos, como os estabelecimentos farmacêuticos, além da disponibilização de álcool em gel.

Um retorno a partir do espaço público

O cenário de retorno à “velha normalidade”, talvez devesse ocorrer a partir do uso e valorização do espaço público, como praças, feiras de rua e até “extensão” de espaços privados para parte da rua. É o que aponta texto no blog Project for Public Spaces. A intenção, nesse caso, se dá tanto no sentido de evitar aglomerações de pessoas em pequenos lugares como um usufruto de aspectos psicologicamente relaxantes, como os árvores, gramados etc. Infelizmente, no Brasil, algumas condutas e ensaios de reabertura comercial indicaram lotações em shoppings.

Fonte: Project for Public Spaces

Corpos e vigilância

A vigilância por meio de câmeras já tem sido uma realidade ampla há um punhado de anos, e essa parece ter sido uma guerra perdida para o vigilantismo. Um novo front, no entanto, parece se abrir diante das operações de inteligência artificial. Uma coisa, afinal, é ser filmado. Outra coisa bem diferente é ser reconhecido por ela.

Pensando nisso, pesquisadores da Northeastern University, do MIT e da IBM desenvolveram uma estampa que confunde o reconhecimento do corpo por IA.

Fonte: Wired

A estampa dificulta o reconhecimento do corpo pela rede neural, que é um modelo/procedimento computacional usados para aprendizagem de máquina por meio de reconhecimento de padrões. Ao ser treinada para reconhecer objetos, uma rede neural lida com as bordas do que está analisando. A estampa, nesse caso, confunde esse reconhecimento, inviabilizando o processo de vigilância.

A rigor, os pesquisadores disseram à Wired que o objetivo final não é dificultar o trabalho das câmeras e do reconhecimento por IA, mas sim encontrar falhas nos procedimentos já usados.

Por outro lado, vale nota o trabalho de Adam Harvey. Em CV Dazzle, o artista propõe o uso de maquiagens e cortes de cabelo que a identificação individual por sistemas de vigilância. Novamente, o truque consiste em utilizar elementos irreconhecíveis ou difíceis de se agrupar por meio de inteligência artificial. Para um ser humano, é fácil entender que se trata de uma pessoa, mas computadores, diante desses ruídos visuais, não conseguem captar os elementos que formam um rosto de fato.

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Fonte: Frankfurter Kunstverein

Pandemia, espaços e corpos

A atual pandemia de Covid-19 trouxe à tona preocupações e questionamentos que tensionam o corpo humano em sua relação com o espaço. Notoriamente, o distanciamento social tem sido uma unanimidade em termos de prevenção e diminuição do contágio pelo coronavírus, uma forma simples e objetiva de “achatar a curva” de novos casos da doença. Isso por si só nos coloca em reflexão sobre como serão nossas relações sociais em curto e em longo prazo, como iremos continuar trabalhando, estudando, realizando atividades físicas, viajando (a lazer ou a trabalho), indo a consultas médicas, tendo momentos de diversão, sociabilizando com amigos etc.

Ou seja, toda nossa construção social é baseada no encontro físico. Claro, temos interações mediadas por telefones, por computadores e por outros dispositivos eletrônicos, além também de cartas, bilhetes e similares, mas a presença física tem se mostrado como um item essencial no desenrolar de uma vida dita “normal”.

O cenário de pandemia e a necessidade de isolamento, de afastamento também trouxeram consigo arranjos sociotécnicos de rastreamento, monitoramento e controle de modo que até então não tínhamos presenciado, os quais colocam o corpo e sua localização num intenso ponto de atenção e preocupação. A ideia, basicamente, tem sido a de estarmos seguros de que, de um lado, certos indivíduos realmente estão onde deveriam estar ou, por outro, pelo menos não estão em aglomeração.

Contact Tracing

Algumas dessas soluções apontam para o uso de dados de localização ou proximidade entre corpos, embora os dados em si não sejam produzidos pelos corpos, mas por telefones celulares. É o que se denomina como a técnica de Contact Tracing (rastreamento de contato), e está baseada no monitoramento de proximidade entre as pessoas.

É notória a iniciativa conjunta do Google com a Apple, empresas rivais no ramo de serviços digitais e sistemas operacionais para smartphones. A solução busca identificar possíveis contatos ou proximidades entre pessoas que possam estar contaminadas pelo coronavírus. Também na mesma linha de raciocínio se encontra a ferramenta Private Kit: Safe Paths, elaborado pelo MIT (Instituto de Tecnologia do Massachusetts).

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Em ambos os casos, a funcionalidade é a de monitorar a movimentação dos indivíduos e, utilizando redes formadas por bluetooth, verificar eventuais proximidades entre as pessoas (ou seja, se elas se encontrarem até determinada distância, por determinado tempo). Quando alguém soubesse que está infectado, disporia tal informação na aplicação, que avisaria outras pessoas de um possível contato (sem identificação ou definição de quem ou quando). Assim, ambas iniciativas são descritas com cuidados para assegurar a privacidade dos indivíduos contaminados, tanto por criptografia quanto pelo não-compartilhamento dos dados com autoridades locais. Curiosamente, um app desenvolvido para uso nas Dakota do Norte e do Sul, nos EUA, viola seus próprios termos de uso ao compartilhar dados de usuários com a rede social Foursquare.

Esse tipo de solução coloca os corpos dos indivíduos sob escrutínio e atenção constante, numa forma de vigilância (ou dataveillance) que trata a todos como suspeitos – ou pelo menos como virtuais infectados. Curiosamente, pressupõe o não-isolamento das pessoas, ou seja, esse tipo de solução leva em conta que num momento ou outro precisaremos sair da quarentena, total ou parcialmente, retornando a um cotidiano dentro de certa normalidade ou apenas indo à farmácia, ao mercado etc., mas fica claro que, para seu pleno funcionamento, necessita de ampla testagem nos territórios utilizados. Sem testes, seus utilizadores não teriam como saber se estão ou não doentes.

Monitoramento de localização

Outro modelo de monitoramento e relativo controle sobre os corpos tem a ver com a observação direta da localização dos indivíduos. Um dos casos mais contundentes foi o de Milo Hsieh, um estudante americano que vive em Taiwan e teve sua localização vigiada pela polícia local. O rapaz fez um tweet no dia 21 de março de 2020 relatando sua experiência ao retornar da Europa para sua residência e, assim, ter de ficar em quarentena. Naquele momento, vale lembrar, a Europa tinha alguns dos epicentros da pandemia, como França, Espanha e Itália, o que o colocava em quarentena obrigatória por duas semanas.

No tweet, e depois numa notícia publica no site da BBC [Coronavirus: Under surveillance and confined at home in Taiwan – BBC News] , ele explica que dois policiais bateram à sua porta às 08:15 daquele dia enquanto ainda dormia. A razão foi simples: seu celular havia descarregado por volta de 07:30, o que impedia de ser rastreado ou contatado. O estudante, por sinal, estava ciente de que o rastreamento seria feito, uma vez que fora avisado pelas autoridades locais quando da sua chegada ao país.

Nesse caso, existe um pressuposto de não-locomoção, e a checagem se dá por meio da verificação de localização. O desligamento do celular pode, então, ter sido considerado como intencional para burlar o monitoramento e as eventuais tentativas de contato.

QR Codes e passaporte de imunidade

A China adotou rapidamente o uso de QR Codes num aplicativo para indicar possíveis estados de saúde, gerados a partir da aplicação Alipay Health Code. Os códigos são gerados a partir do deslocamento das pessoas e mudam de cor (verde, amarelo ou vermelho) para indicar um possível estado de salubridade do indivíduo, considerando as áreas por onde passou nos últimos dias.

A passenger uses a smartphone at a banner displaying a quick response (QR) code enabling the inspection of one's travel history at a subway station in Wuhan, China, on Friday, May 1, 2020. The lifting on April 8 of the unprecedented lockdown on Wuhan -- where the virus pathogen first emerged -- was a milestone. Stringent nationwide restrictions in China meant the world's second-largest economy recorded its deepest contraction in decades over the first quarter. Photographer: Qilai Shen/Bloomberg
Fonte: Financial Times

A aplicação funciona escaneando um QR Code posto num lugar público, como uma estação de metrô, por exemplo, o que é feito com o próprio celular individual a partir de sua câmera. Após a leitura, o aplicativo dá um feedback daquele código que indica a permissão ou não de adentrar o local. No fim das contas, funciona como uma espécie de passaporte a dar caminho livre ou não.

Fonte: Público

The QR codes, produced with the mobile app Alipay, are based on the users’ movements over the previous two weeks and tell whether users have been to virus-hit areas.

Comissão Nacional de Saúde da China, 20 de fev

O uso de QR Codes assinala um não-isolamento total das pessoas e um controle espacial a partir de seu histórico de trajetórias – o que vai na contramão de uma quarentena total. Há relatos de que o aplicativo não é obrigatório mas que muitas cidades já o utilizam como um modelo generalizado de monitoramento e controle dos corpos.

Num outro caminho, muito se comenta num possível “passaporte de imunidade”, uma espécie de certificado que diz se determinada pessoa já teve ou não Covid-19 e, portanto, está imune à doença. Esse documento, numa analogia ao passaporte que permite viagens internacionais, serviria para atenuar as severidades da quarentena usual e permitiria um retorno aos formatos tradicionais de trabalho e deslocamento.

Na Europa, existe um planejamento conjunto para o desenvolvimento de uma solução baseada em blockchain. Propostas como essa, em geral, têm sido levadas em consideração por vários países, mas ainda apresentam muitas controvérsias, que vão desde o desconhecimento geral sobre o vírus até a possibilidade de falsificação da documentação, passando, claro, pelas delicadas questões ligadas à privacidade e à vigilância por aparatos estatais.

Monitoramento no Brasil

No contexto brasileiro, o governo chegou a anunciar que iria usar dados de localização do celular para monitorar aglomerações. O anúncio havia sido feito pelo ministro da Ciência, Inovação, Tecnologia e Comunicação (MCTIC), Marcos Pontes, num tweet no dia 27 de março, que foi apagado em seguida. Apenas no dia 02 de abril é que as operadoras de telefonia confirmaram a colaboração com o governo. Apesar de ter sido apagado, é possível ver o vídeo em outra mensagem na rede social.

O procedimento se daria da seguinte maneira: as operadoras iriam transferir os dados para uma nuvem pública, onde seriam anonimizados. Desse modo, não seria possível identificar as pessoas, de modo a não ferir o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). A ideia, contudo, gerou bastante controvérsia, não apenas pelas incursões negativas rumo a uma vigilância generalizada mas também porque, em meio à pandemia, a LGPD acabou sendo postergada. Alguns links que dão conta dessa querela:

https://medium.com/codingrights/radar-legislativo-especial-covid-19-e-tecnologia-3454a68f2fb4

O que esses exemplos nos dizem?

Via de regra, todas as iniciativas parecem estar alinhadas com práticas mínimas de resguardo da privacidade, assegurando anonimato das pessoas e criptografia de seus dados. A questão aqui, a meu ver, não é tanto quanto a esse ponto (que podem apresentar falhas) mas o que elas trazem de apontamentos na relação corpo-espaço que podemos ter de agora em diante. Essas soluções, ainda que imediatas, parecem apontar que espaços já usualmente controlados, como aeroportos, terminais de ônibus, bancos (o que Martin Dodge e Rob Kitchin descrevem pelo termo code/space, no livro homônimo) sejam ainda mais monitorados, escrutinados, vigiados e controlados. Junto deles, também seriam analisados, observados e detalhados os corpos, que caminham em vias de perder a (relativa) liberdade de não serem vigiados. Não é de se duvidar que, por exemplo, países busquem adotar medidas baseadas em aplicativos para celular e/ou dispositivos físicos (como wearables) para rastrear passos individuais e coletivos ou ainda para verificar parâmetros mínimos de saúde – o que, a rigor, já é feito com termômetros, por exemplo, mas, nesse caso, a ferramenta e a produção do dado ficam a cargo não de indivíduos, mas das instituições governamentais, empresas etc.

Juntas, essas práticas incorporam um senso de vigilantismo e construção de tipos inadequados para circulação, o que é uma indicação clara de separação de corpos saudáveis e corpos doentes. Existe uma necessidade evidente de segregação (que chamamos de quarentena) por motivos de bem coletivo, mas não é absurdo questionar os caminhos classistas, racistas e sexistas que algumas dessas soluções podem tomar . Lembremos que no Pará o serviço doméstico foi tratado como essencial, ao lado de áreas como alimentação, distribuição, saúde etc., o que sublinha a relação tensa entre os poderes constituídos e determinadas classes sociais.

Uma das questões que ficam é: o que teremos a seguir para rastrear, monitorar e controlar (e, quem sabe, punir) os corpos em suas movimentações no espaço? A ver.

Smartcities, comunicação e design: alguns passos iniciais

O fenômeno das smartcities não é exatamente algo novo, embora ainda apresente espaço para desenvolvimentos e boas compreensões. Dizer que não é novo, contudo, não significa que seja algo completamente difundido e aplicado, especialmente no Brasil. Nossas cidades ainda possuem problemas diversas de ordem básica, e toda a inteligência aplicável a nosso contexto parece estar bastante longe ainda do minimamente aceitável.

Visualizando essa lacuna, decidi investir esforços numa investigação sobre as relações possíveis entre design, comunicação e smartcities. Sendo oriundo da área da Comunicação, tenho uma preocupação básica quanto àquilo que tange os aspectos comunicacionais que uma cidade inteligente pode apresentar – tanto em termos de informação quanto de sociabilidade. No entanto, ao estar situado num curso de design especificamente voltado às mídias digitais, é fácil perceber potencialidades e dificuldades de conceituação e projeto atreladas ao espaço público, à distribuição de serviços, à informação da população, dentre outros pontos.

De modo geral, esta pesquisa busca criar pontes teóricas e práticas que liguem os campos do design e da comunicação ao fenômeno das smartcities, propondo, desde um ponto de vista crítico e pragmático, caminhos possíveis para pesquisas e desenvolvimento de soluções digitais (serviços, produtos) ligadas às cidades inteligentes. Evidenciam-se, assim, outros objetivos mais específicos ligados a esse novo campo de estudo:

  • Descrever e criticar os discursos que dão forma ao fenômeno das smartcities
  • Identificar potencialidades de desenvolvimento em relação ao design
  • Identificar desafios, problemas e questões éticas quanto à produção e coleta de dados ligados ao espaço urbano
  • Encontrar possíveis “boas práticas” e diretrizes de desenvolvimento para projetos em smartcities

De algum modo, portanto, espero que esse blog sirva como um trabalho em progresso, contendo registros, pensamentos, dúvidas e anotações em geral.

Novas relações e dobraduras

Existe uma questão ampla sobre a relação do design com esse nova área de pesquisa, especialmente por conta do modo como se pensa o próprio objeto teórico do design. Em geral, quando falamos desse campo, estamos falando de objetos físicos (calçados, xícaras, canetas, carros), produtos gráficos (jornais, revistas, embalagens), interfaces (websites, telas sensíveis ao toque, aplicativos), games (o que resvala nas interfaces gráficas), branding e identidade visual e visualização de dados e arquitetura da informação. No fim das contas, o design, que nasce como uma área ligada à produção e reprodução de objetos físicos ganha novas perspectivas relacionadas à sociedade da informação, às mídias digitais, aos simbolismos erigidos dentro do capitalismo financeiro e à interação com interfaces gráficas. De certo modo, as preocupações e atenções que lidavam antes com a materialidade (como no Art Nouveau e no Arts and Crafts, precursores da consolidação do design) passam a lidar, depois, com algum aspecto de imaterialidade: a interface, que não tem peso (Byung-chul Han) mas é crucial, o branding, que é intangível mas valoroso, a experiência com objetos e serviços, que não se toca mas se percebe.

Não é de se espantar, portanto, que novas formas de atuação para o design precisem ser pensadas para o novo século, atuações estas menos pautadas na materialidade e mais no espraiamento da experiência, da marca, da interação e da informação. Se pudermos atualizar a ideia de Jenkins quanto à convergência e à conectividade (spreadable media), faz sentido considerar que o próprio objeto do design precisa ser pensado em mais de uma dimensão de uso, apropriação e significação, e não apenas uma consolidação de uma ideia ou de uma prática. Me parece claro que o objeto do design para o novo século não seja apenas uma chaleira, mas uma chaleira que possa (mas não necessariamente precisa) ter embutida funcionalidades baseadas na produção e troca de dados digitais.

Nesse contexto, os objetos perdem seus significados e condições epistemológicas usuais e passam por um processo de ressignificação. O que é, por exemplo, uma assistente virtual? Uma interface, um serviço, uma caixa com autofalantes e microfone? Dizer que é um software não é suficiente, pois o público que a utiliza não compreende como tal: ela vai além de comandos e chega a ser propositiva, proativa quanto às demandas e situações rotineiras. Dizer que a Alexa é um software equivaleria a dizer que a chaleira acima citada é um conjunto de ligas metálicas deformadas e depois resfriadas.

E o que são as smartcities?

No contexto dos estudos em smartcities – e nos discursos em geral sobre o assunto – a cidade inteligente é tratada como dotada de infraestruturas baseadas em tecnologias da informação, as quais estariam baseadas na captura de dados, trocas informacionais rápidas, em tempo real, numa senciência sobre a cidade e suas ocorrências. Existe uma perspectiva de monitoramento, controle e ações em decorrência dos dados obtidos, seja no tocante ao trânsito (um acidente que ocorreu em tal via, uma zona com maior congestionamento além do previsto), à segurança (atentados, assaltos), distribuição de água ou energia e demais assuntos concernentes à gestão urbana. As palavras que dão a tônica da cidade inteligente são aquelas da ordem da eficácia, da rapidez, da segurança, o que põe em primeiro plano a perspectiva racionalista de onde vêm os pontos de fuga da smartcity. O que, por outro lado, nos leva a um outro lado da moeda: há como falar de smartcities que não sejam a priori eficientes e funcionais?

Numa visão aérea, assim, existem algumas questões que norteiam esse estudo. São elas:

  • O que é uma smartcity? Como uma cidade pode ser considerada inteligente? O que define a inteligência de uma cidade?
  • O que o termo descreve? O que ele traduz ou busca produzir como sentido? Como pesquisadores se apropriam dele e com a finalidade de quais significações? Como ele é utilizado em campanhas, anúncios à imprensa e entrevistas de jornais? O que ele busca abarcar enquanto práticas e ideias?
  • O que o fenômeno nos diz sobre o tempo atual, nossa sociedade, tecnologias e culturas?
  • Como a smartcity pode se inscrever como objeto de estudo concernente à Comunicação e ao Design?

Quando se fala de smartcities, de algum modo o termo atualiza aquilo que em outros tempos buscou-se chamar de cidade eletrônica, cibercidade, e-topia… As expressões não significam a mesma coisa mas falam de uma dimensão informatizada do espaço urbano, de uma inteligência baseada em tecnologias digitais e uso intenso de computação. Longe de abordar um aspecto futurista, todas essas perspectivas lidam com tecnologias e práticas já correntes há pelo menos duas décadas.

Além das perguntas acima detalhadas, há outras a serem consideradas:

  • Quais questões técnicas e operacionais ligadas às smartcities?
  • Há modos não-geográficos de representação espacial quando atuamos dentro do escopo das smartcities? (Esquemas, metáforas, organogramas)
  • Que problemas de privacidade, proteção de dados e sociabilidade as smartcities ensejam?
  • As smartcities podem produzir segregação no uso e no acesso ao espaço público?
  • Que questões podemos pensar quando aliamos palavras como corpo, espaço e interface?

Por fim, há de se frisar que, junto às smarticities, outros termos são postos em evidência como eixos de sustentação: big data (tratamento de grandes volumes de dados), computação ubíqua e pervasiva (aplicação de capacidades computacionais em contextos de apagamento/miniaturização de computadores) e Internet das coisas (IoT – capacidade de objetos técnicos estarem em rede trocando informações) são alguns dos termos que chegam para balizar e fundamentar a existência de cidades inteligentes.